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Quando o futebol é o medicamento para um estilo de vida saudável

Em novembro de 2019, a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE) publicou o relatório ‘Health at a Glance 2019’, no qual ficou plasmado que “as taxas de obesidade têm aumentado nas últimas décadas em quase todos os países da OCDE, com uma média de 56% da população com sobrepeso ou obesa”. Em Portugal, 67,6% da população acima dos 15 anos regista excesso de peso ou obesidade. “Na União Europeia, estamos na linha da frente dos países com maior obesidade, e se olharmos para as crianças a realidade não é muito diferente”, explica Micaela Morgado, nutricionista e aluna do doutoramento em Atividade Física e Saúde na Universidade do Porto, que decidiu atacar o problema pela raiz.

Ainda de acordo com o relatório publicado pela OCDE, Portugal surge no nono lugar no que toca à obesidade em crianças com idades entre os 5 e os 9 anos de idade, com uma prevalência de 37,1%. É o quarto valor mais elevado na União Europeia, atrás de Espanha, Grécia e Itália, e demonstra a dimensão que o problema assume no nosso país. Sendo a obesidade uma doença crónica, que pode originar o aparecimento de outros problemas de saúde graves, como a diabetes, as doenças cardiovasculares ou o cancro, o seu combate exige medidas firmes, que podem ser passadas para a população de uma forma simples e divertida.

Foi com isso em mente que Micaela Morgado decidiu desenvolver o estudo “Futebol e Nutrição para a Saúde - Abordagem multidisciplinar na modulação do microbiota intestinal e parâmetros metabólicos em crianças em idade escolar”, através do qual pretende “utilizar o futebol para promover a prática de atividade física” junto dos mais novos. “São inúmeras as evidências existentes ao nível dos seus benefícios para a saúde”, explica a investigadora, que se lançou ao trabalho tendo como objetivo “melhorar vários parâmetros metabólicos, os níveis lipídicos, o peso e a capacidade cardiorrespiratória” de crianças do 1.º ciclo de escolaridade. A ideia passou por selecionar quatro turmas, divididas pelas escolas do Ensino Básico de Fermentelos e de Aguada de Cima e pelos ATL do Centro Social e Paroquial de Recardães e do Centro de Educação Integrada da Bela Vista, no concelho de Águeda, que desempenharam diferentes atividades. “Estamos a falar de cerca de 90 crianças”, que cumpriram 24 sessões ao longo do segundo período letivo. A pandemia de Covid-19 acabaria por impedir que o projeto fosse concluído numa das escolas, estando previsto o seu reatamento em setembro, quando se reiniciar o novo ano letivo.

O futebol foi o mote principal do projeto, mas, em algumas escolas, foi igualmente implementada a vertente da nutrição, uma vez que “existem muitas evidências que a atividade física e uma alimentação saudável são capazes de promover a saúde nas crianças”. Uma das principais inovações deste estudo está, precisamente, neste vetor. Sendo a microbiota intestinal das crianças uma área relativamente pouco explorada, Micaela Morgado propôs-se a perceber “até que ponto a nutrição e a atividade física são capazes de a modelar”. Ou seja, “perceber se, realmente, a alimentação mais cuidada e a prática de atividade física vão fazer com que, no final do estudo, os microbiotas positivos, digamos assim, estarão mais frequentes na flora intestinal das crianças”, acrescenta, ela que não esconde uma certa curiosidade por conhecer os resultados da sua investigação. “É uma novidade. Vamos ver o que descobrimos”.

Evolução notória nos mais novos
No início de março, pouco antes de a pandemia de Covid-19 ter assolado o nosso país, visitámos o ATL do Centro Social e Paroquial de Recardães para uma das últimas sessões do projeto. Naquele final de tarde frio, apesar do sol ser a única mancha a destoar no azul do céu, a animação no ringue aquece-nos a alma. Dezenas de crianças, separadas em duas filas, vão contornando, à vez, uns cones com a bola no pé, sob orientação do treinador Cláudio Santos. Diana, de 7 anos, é uma das entusiastas. Apesar de praticar natação, não hesita em escolher o futebol como aquilo que mais gosta de fazer. Se no início do programa “jogava com a mão, porque não sabia jogar com o pé”, hoje já chuta a bola com grande à-vontade e, quando assume a baliza, também a agarra com determinação. E se a pequena Diana evoluiu a técnica, Leonardo, três anos mais velho do que ela, está bem melhor fisicamente do que na primeira aula. “No início, ficava cansado mais rápido, mas agora aguento a aula toda. Tenho de continuar”, diz, determinado, prometendo “começar a fazer mais desporto, porque é importante”. Mais desenvolto com a bola, Rodrigo, de 9 anos, destaca-se pela facilidade com que cumpre cada exercício. “Já joguei futebol, no SC Fermentelos, mas deixei porque também estava no basquetebol”, apressa-se a dizer este fã de matemática, que aproveitou a iniciativa para “matar saudades” do desporto rei.

Estes três exemplos ajudam a explicar a importância de um projeto que permite a “crianças sem qualquer ligação ao futebol poderem ganhar o gosto pela modalidade e terem mais um período no dia que lhes proporcione atividade física”. A ideia é partilhada por Cláudio Santos, treinador de 25 anos, que lembra que existem “muitos jovens que têm dificuldades enormes a nível motor, porque cada vez são mais sedentários”, razão pela qual, defende, “iniciativas deste tipo devem ser mais vezes replicadas”. Os exercícios que prepara são simples, pois devem permitir que todos os meninos e meninas os consigam completar. “Estamos a falar de alunos do 1.º ao 4.º ano, rapazes e raparigas, com diferentes níveis de capacidade nesta fase. Então, fazemos os exercícios mais básicos possíveis. Quem executa bem não vai ter dificuldade e quem tem alguma dificuldade vai iniciando a aprendizagem. Já se conseguem notar evoluções na grande maioria deles, mas era preciso trabalhar com eles durante mais tempo”, diz.

Ao seu lado está André Coelho. Não é tão interventivo quanto Cláudio, mas não desvia o foco dos exercícios, de forma a poder auxiliar os mais novos sempre que tal é necessário. Apesar de a sua área de especialização ser a canoagem, modalidade que pratica há 20 anos, o investigador na Universidade de Coimbra, que faz parte da equipa técnica da seleção nacional de canoagem, lembra que “só com um bom trabalho no que diz respeito à educação nutricional e à própria atividade física é que poderemos vir a ter, no futuro, bons atletas”. “Este projeto demonstrou-nos isso”, refere o responsável pela supervisão da aplicação dos conteúdos referentes à atividade física, que, com o decorrer das sessões, começou a notar “pequenas alterações nas escolhas alimentares que as crianças fazem e na importância que elas dão em fazer mais exercício durante o dia”, o que teve reflexo “nas avaliações feitas a meio do projeto, relativamente ao perímetro da cintura, entre outros aspetos”.

Micaela Morgado concorda e explica que “é visível nas crianças uma diminuição do peso e a sua evolução física, pela forma como correm e manuseiam a bola durante cada exercício”. A isto há que juntar o papel preponderante desempenhado pelos pais, “porque as escolhas alimentares são feitas por eles, assim como o estímulo à atividade física”. Por tudo isto, a investigadora vê no “Futebol e Nutrição para a Saúde” um projeto com potencialidade para ser replicado em mais localidades. “Seria muito interessante que os municípios pudessem ter esta oferta como uma AEC, uma atividade complementar para as crianças. Não só o futebol, mas sobretudo a nutrição, porque os mais novos têm uma capacidade incrível de passar a mensagem”, explica. Essa mensagem tem como fundamentos um estilo de vida mais ativo e um maior cuidado com a alimentação, o que poderá “afetar a saúde e as opções de cada agregado familiar”.

“Independentemente se eles vão ou não jogar futebol, estão aqui os pais e as mães do amanhã. Atividades como esta são muito importantes”, acrescenta Cláudio Santos, já rodeado pelos mais novos. Micaela sorri e procura corresponder a cada solicitação. Ela sabe que, diante de si, estão os agentes da mudança no futuro. “A educação nutricional, de uma forma prática e lúdica, tal como fizemos, permite-lhes colocar em prática os conhecimentos que vão adquirindo. Acaba por ser superdivertido para as crianças, ao mesmo tempo que estamos a ensiná-las para que, no futuro, sejam adultos mais responsáveis, conhecedores do que faz bem e, assim, poderem fazer escolhas conscientes”, sublinha.

Fotografia
Diogo Pereira


*Esta reportagem foi realizada antes do cancelamento das competições da AFA
**Texto editado às 10h13 do dia 21/08

18 de Julho de 2020
Rui Santos
ruisantos@afatv.pt
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